Para entender a debandada da Ford do Brasil é preciso, inicialmente, ter em mente que os modelos de negócio da indústria da mobilidade (onde se destaca a automobilística) estão, já há algum tempo, passando por uma mudança geral e radical. Todas estão se reinventando para se adaptarem a uma nova era. É questão de vida ou morte.
Os automóveis passaram da categoria de bens patrimoniais para a de bens de serviço. A eletrificação da frota circulante avança a passos largos, o que exige novos e pesados investimentos em tecnologia. O interesse da população mais jovem pelos automóveis como símbolo de status míngua a olhos vistos. Foi substituído pela ‘mobilidade’ digital. Ser “cool” hoje é ter os computadores e tablets mais avançados.
Nas matrizes e tanques pensantes das centenárias indústrias automobilísticas decisões drásticas estão sendo tomadas para a sobrevivência nesta nova realidade.
A decisão da Ford para o Brasil já vinha sendo planejada há vários anos. Os sinais eram evidentes, a começar pelo fechamento da unidade industrial de São Bernardo do Campo, em 2019. A estrutura de marketing e comunicação foi desidratada. O material divulgado pelo setor de imprensa da montadora no Brasil já há muito se limitava a temas sem maior importância, para não dizer exóticos, e, de vez em quando, a anúncios de um ou outro veículo importado.
Por mais de uma década a Ford Brasil viveu sua derradeira fase de glória com o sucesso do EcoSport, lançado em 2003. Primeira a apostar no segmento dos SUVs, a Ford nadou de braçada por muitos anos, com o EcoSport liderando vendas. A ficha dos concorrentes custou a cair e nesse período a Ford atingiu seu ápice neste século. Só que esse sucesso ocasional lhe subiu à cabeça. Ficaram descansados além da conta e, quando tentaram acordar, já era tarde. A concorrência entrou de sola com produtos mais interessantes e modernos. A apatia levou o EcoSport para o fim da fila.
Houve também ingratidão por parte da montadora. A Ford foi uma das várias empresas do setor automobilístico que nas últimas décadas se beneficiaram da famigerada guerra fiscal entre os estados. A unidade de Camaçari, na Bahia, nasceu e foi construída única e exclusivamente em decorrência desses subsídios. Com a substancial redução de alguns impostos, isenção de outros, doação de terrenos, entre outros “mimos”, o desembolso efetivo da montadora para a nova fábrica foi irrelevante. Isso sem mencionar os créditos a juros muito abaixo dos valores de mercado a que teve acesso o conglomerado norte-americano.
Agora, sem nenhuma cerimônia, por meio de um seco anúncio, informa que encerra sua presença centenária no país. Fecha simplesmente as portas e vai embora deixando como agradecimento uma carteira de cinco mil desempregados, fora os cerca de sete mil empregos indiretos que também desaparecem.
A empresa sai culpando a pandemia, que hoje é desculpa para tudo. Ressalta que o vírus, aliado a outros fatores como o custo Brasil e a elevada tributação brasileira foram razões determinantes pela queda nas vendas e que isso levou a essa tomada de decisão. Como se fosse a única que enfrenta esse momento fatídico. Vale lembrar que o fim da produção de carros de passeio (compactos, sedãs, hatches etc.) é uma decisão global, atingindo a Ford em odo os mercados, não apenas o Brasil. O foco agora é a tecnologia elétrica em modelos mais sofisticados e SUVs, além das picapes.
Aqui é razoável dar uma certa razão à Ford. O Brasil precisa urgentemente de implementar a reforma tributária que vem sendo tentada não é de hoje. A burocracia tributária é um verdadeiro cipoal de absurdos que, no caso automotivo deste país faz com que o cidadão, ao comprar um carro, chegue a destinar metade do valor pago aos cofres públicos. A reforma que pode mudar isso está dormindo nas gavetas do Congresso. Nossos representantes no legislativo, por razões que a própria razão desconhece, são insensíveis à essa urgência.
A Ford não foi a primeira e não será a última, mas é até agora a mais impactante por sua importância econômica e histórica no Brasil, onde se estabeleceu em 1919 no centro da cidade de São Paulo, com uma linha de montagem do icônico Modelo T, o Ford Bigode. Para refrescar a memória sobre casos semelhantes de indústrias montadas com recursos de subsídio fiscais que deram para trás, vamos a Juiz de Fora (MG) na fábrica da Mercedes-Benz, que desde seu nascimento se tornou pedra no sapato de todos e só não fechou ainda, ao que parece, por cláusulas contratuais impeditivas. Vamos também a Iracemápolis (SP), também da Mercedes-Benz, que há poucas semanas fechou as portas. Vamos a São José dos Pinhais (PR) onde informações ainda não oficiais deixam saber que a Audi pode a qualquer momento encerrar a montagem local de seus carros.
Nos casos da Mercedes-Benz e Audi, operações CKD, há que se levar em conta a baixa escala de produção, que encarece e inviabiliza a montagem dos carros aqui. Mas precisamos lembrar que, em compensação, todas essas marcas tiveram benefícios no imposto de importação de seus carros, por aqui implantarem unidades indústrias. E sempre souberam da quase impossibilidade em atingir uma escala que viabilizasse o projeto.
Em suma, para evitar novos fechamentos de fábricas, o Brasil está nas mãos da Câmara dos Deputados e do Senado, nossos representantes no legislativo. Que eles deixem de olhar apenas para seus umbigos, seus interesses político partidários, e coloquem em pauta, em regime de urgência, a proposta de reforma tributária que já dá sinais de mofo na gaveta daquela casa. É o que está ao nosso alcance, sem esquecer que a indústria está, no mundo todo, se reinventando. Talvez, livre desse abusivo emaranhado fiscal, o Brasil, como maior mercado consumidor da América do Sul, se torne interessante para os novos modelos da indústria da mobilidade, não apenas como mercado, mas como polo de produção, que, pela geração de empregos, é o que realmente interessa.